O ANDARILHO
(em “Humano Demasiado Humano” #638)
"Quem
alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um
andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois
esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto
realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com muita
firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante, que tenha
alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins,
em que estará cansado e encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria
oferecer repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o
portão, animais de rapina uivem ao longe e também perto, um vento forte se
levante, bandidos lhe roubem os animais de carga. Sentirá então cair a noite
terrível, como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração se cansará
de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma
divindade da ira, quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos
que nela vivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que no
outro lado do portão e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode
acontecer ao andarilho; mas depois virão, como recompensa, as venturosas manhãs
de outras paragens e outros dias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos
montes, os bandos de musas passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no
equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas
e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles
espíritos livres que estão em casa na montanha, na floresta, na solidão, e que,
como ele, em sua maneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos.
Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia,
entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro,
assim tão luminoso, tão sereno-transfigurado: - eles buscam a filosofia da
manhã."
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